Um cão é um cão é um cão

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Prevenir é bastante melhor que remediar, principalmente se o resultado é, muitas vezes, a morte de um cão. Isto é verdade no que toca à saúde dos nossos cães, mas não só. Pois a realidade é que a doença que mais cães mata no mundo urbano e civilizado do século XXI não é o cancro nem o ataque de coração. É a falta de educação.
A lista de razões porque um cão é abandonado ou entregue num canil é muito grande, mas há quase sempre um denominador comum, um fio condutor que transforma todas essas razões na mesma – o cão tem comportamentos desagradáveis, está fora de controlo, não obedece, a presença dele transformou-se numa chatice – o cão porta-se mal. Rasga roupas no meio da brincadeira, atira as crianças ao chão, rouba comida de cima da bancada, rosna quando tentamos tirá-lo do sofá, espalha o lixo no chão da cozinha, rói os nossos sapatos novos, faz chichi nos tapetes, só come porcarias do chão, mordisca braços e tornozelos, puxa pela trela e nunca, mas nunca, vem quando o chamamos… o cão perdeu a graça toda e assim não há quem o ature. O cão é um mal-educado.

E é verdade. Muitos cães são muitíssimo “mal-educados”. Impossíveis de aturar. Mas ninguém se lembra de achar que a birra terrível que um garoto de 3 anos faz na fila do supermercado é culpa dele. Ninguém espera que os miúdos nasçam a saber ser simpáticos, calmos e educados em qualquer circunstância. E uma criança é da mesma espécie que nós. Então, como é que há tanta gente que parece achar que os cães, que são de uma espécie diferente, têm obrigação de nascer a saberem comportar-se no nosso mundo?

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Os cães não são pessoas. Não seguem a telenovela, cheiram os rabos uns dos outros. Não escrevem romances, enterram ossos no quintal. Não concorrem a cargos políticos, defendem o seu território de estranhos. Não leem o jornal, comem fezes de outros animais. Não gastam o ordenado em roupas da última moda. Não têm ordenado. Não têm moda. Perseguem esquilos e coelhos e gaivotas. Os cães são cães, e são uns mestres nessa arte. São os melhores. Não há animal nenhum que consiga ser um cão tão bom como os cães são. Os cães são absolutamente excepcionais a serem cães. Agora o que o cão não é, é humano.

No seu mundo, é normal roer sapatos, fazer uma mija contra o vaso da árvore-da-borracha, comer a sandes do Francisquinho e os cocós do gato e dar uma dentada na avó que se atreveu a querer tirar-lhe o osso. É um cão.
A principal causa de morte dos cães urbanos é a falta de educação. Mas não a deles. A dos donos, que não se aperceberam que um cão é um cão é um cão, e quando nasce não faz a mais pequena ideia de qual a forma correcta de se comportar no mundo humano.
Imaginem que hoje quando acordaram estavam, como por magia, no Japão. No séc. XIX. Não só não falam a língua como os hábitos, costumes e tradições têm muito pouco a ver com a vossa realidade. Mas há um senhor japonês, que pelos vistos parece ser o responsável pelo sítio onde estão, que insiste em vos dizer coisas. Volta e meia vira-se para vocês e fala, e depois parece que fica à espera de qualquer coisa, e às tantas está aos gritos, e a vocês parece que ele quer qualquer coisa, e vocês até faziam, mas para isso era preciso perceberem o que raio é que ele está a dizer…

A principal causa da morte dos cães, hoje em dia, é evitável. A vacina é grátis, e é dada pelo dono, em casa. Chama-se educação, e só precisa de calma, paciência e consistência.

Calma, porque o cão não é surdo, e a sua capacidade de aprendizagem não é diretamente proporcional ao volume da voz do dono. Quando erra, não está a fazer de propósito. Nem sequer está a errar, no seu universo. Está a ser um cão. Sem calma, o cão vai ficar excitado, nervoso, ansioso, intimidado. Vai aprender com muito mais dificuldade. A calma conduz à alegria, a falta de calma ao medo.
Paciência, porque, se já é difícil aprender novas formas de comunicação intra-espécie (como eu aprender japonês, sendo tanto eu como os japoneses seres humanos), imagine-se aprender comunicação inter-espécie. E depois não é do Einstein que estamos a falar, é de um cão que tem que aprender, primeiro, a compreender um ser humano, e depois, a descodificar e interiorizar todas as regras e comportamentos que lhe exigimos.

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Uma criança de seis anos leva um ano inteiro a aprender a construir frases muito simples e a resolver problemas aritméticos básicos. Um cão, mesmo um cão absolutamente genial, tem uma capacidade de aprendizagem bastante mais reduzida. Precisa de tempo e de prática para aprender a portar-se de maneiras que vão contra os seus instintos mais básicos.
Finalmente, consistência, porque de cada vez que decidimos que hoje o cão pode saltar do carro assim que se abre a porta – afinal aqui nem há trânsito – estamos a estragar todo o trabalho que tivemos até aqui a ensinar-lhe que tem que esperar pelo nosso convite para poder sair.

Educar um cão nem é sequer difícil. Basta que, quando o cachorrinho chega a casa, pensemos como queremos que ele se porte quando for adulto. E, passo a passo, com calma, paciência e consistência, vamos explicar-lhe como gostaríamos que ele se comportasse em cada situação. Vamos ensinar-lhe que quando estamos a comer ele se vai deitar na sua cama. Que uma porta aberta não significa que pode sair a correr para o meio da rua. Que consegue controlar os seus impulsos e adaptar-se ao nosso mundo.

E vamos também fazer um esforço para compreender o seu mundo. Um cão é um cão é um cão. Merece o nosso respeito. Merece que compreendamos que não é deitado no sofá a ver a telenovela que ele é mais feliz, é a fazer coisas de cão. Ao nosso lado, por toda a sua vida, porque a sua presença é um prazer e enriquece a nossa.

Teresa Sacadura

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